sexta-feira, outubro 27, 2006

O Domínio do Incaracterístico

"A casta que, entre o Incaracterístico, domina o segredo dos rumos e das trocas mercantis, confia no medo histriónico da casta executiva, e esta no medo néscio e mimético da casta subalterna. Por isso, o Incaracterístico-detentor-do-poder age sem se expor, manipula os que supõem deter o poder político e se pavoneiam nas arenas próprias, e estes manipulam os burocratas e a "opinião pública", resultando enfim a plena circularidade da mentira, do mal-entendido e da intimidação, garantes da "liberdade" vigente na Idade Absurda. E como o bem supremo é ali o dinheiro, é sobre ele - não mais sobre o suplício - que a intimidação repousa. "

"A angústia e a agonia, os gritos abafados e sem eco dos torturados entregues à crueldade dos esbirros de um qualquer dos tiranos periféricos, não tendo valor de mercadoria, não têm significado para o Incaracterístico: a menos que possam tornar-se notícia transaccionável, que adquiram preço; ou sirvam de moeda de troca para que o tirano, advertido diplomaticamente, seja levado a negociar em condições mais favoráveis o preço do petróleo ou a compra de armas novas. "

"A sistemática e premeditada anulação da biosfera conduzida pelo Incaracterístico no decurso dos últimos decénios - deflorestação, chuvas ácidas, acumulação de subprodutos tóxicos, derrame de desfoliantes, caça e pesca em escala industrial nos oceanos e continentes - serve o projecto titânico da construção da Tanatosfera, essa camada planetária sem vida, onde se movem "robots" sobre extensões vazias e o Incaracterístico celebra a grande orgia de ruído e destruição. "

"As guerras movidas pela Absurdidade, de preferência longe dos seus territórios nucleares, friamente calculadas em termos de execução e consequências, são aferidores dos preços do urânio, do cobalto ou do petróleo; gizadas como meio de activar ou desactivar mercados, alterar o valor de moedas, modificar balanças e balanços de pagamento entre estados, animar ou desanimar movimentos centrífugos e centrípetos de mercadoria, não contemplam quaisquer valores humanos (excepto os que directa ou indirectamente se prendem às circunstâncias produtivas ou de consumação do consumo), mas tão-só ao mapa dos valores de troca. "

António Vieira, Ensaio sobre o Termo da História, 1994