quinta-feira, outubro 12, 2006

Robert Antelme

"Lá longe, a vida não se manifesta como uma luta constante contra a morte. Cada um trabalha e come, sabendo-se mortal, mas o pedaço de pão não é o que de imediato faz recuar a morte e a mantém à distância; o tempo não é exclusivamente o que aproxima a morte, ele transporta as obras dos homens. A morte é fatal, aceite, mas cada um actua apesar dela.
Aqui, pelo contrário, nós estamos todos para morrer. É o objectivo que os SS escolheram para nós. Não nos fuzilaram nem nos enforcaram, mas cada um de nós, racionalmente privado de comida, deve tornar-se no morto previsto, num espaço de tempo variável. O único fim de cada um de nós é por isso tentar não morrer. O pão que comemos é bom porque temos fome, mas para além de acalmar a fome, sabemos e sentimos também que através dele a vida se defende no interior do corpo. O frio é doloroso, mas os SS querem a nossa morte pelo frio, é preciso protegermo-nos dele, porque é a morte que está no frio. O trabalho não tem sentido – para nós é absurdo – mas desgasta, e os SS querem a nossa morte pelo trabalho, por isso também temos de nos poupar no trabalho, pois a morte está nele. E também há o tempo: os SS pensam que à força de não comermos e de trabalharmos, acabaremos por morrer; os SS pensam que nos vencerão pela fadiga, o mesmo é dizer, pelo tempo, a morte está no tempo."

[…]

"Bortlick também galhofa com um outro Meister. Por isso, toda a gente pode galhofar. Mas se eu me aproximo para levar a peça, ele deixa de rir, e se é ele que vem ter connosco, nós também paramos de rir. Podemos rir ao mesmo tempo, mas não juntos. Rir com ele seria admitir que alguma coisa entre nós podia ser objecto de uma igual compreensão, assumir o mesmo sentido. Mas a vida deles e a nossa assumem um sentido exactamente oposto. Quando nos rimos, é daquilo que os faz empalidecer. Quando eles se riem, é do que nós odiamos."

[…]

"O lavrador romeno que se tinha alistado nas Waffen SS […] estava a um canto da sala e salteava batatas em margarina. Sentara-se num banco e sorria, com o mesmo sorriso de quando se preparava para denunciar os companheiros que haviam roubado batatas do silo e as coziam na salamandra. Observava a cena. Agora que se tinha passado para os SS, ainda admirava mais a força de Fritz e do polizei. Tinha abandonado definitivamente o lado dos tipos que eram desprezíveis ao ponto de se fazerem espancar daquela maneira. Estava contente com a sua escolha. Já não tinha de incorrer na desconfiança dos chefes. Estava do lado do bem. A pancada que os tipos apanhavam reforçava definitivamente essa consciência de estar o lado do bem. Não é possível apanhar pancada e ter razão, estar sujo, comer cascas e ter razão. "

A Espécie Humana, Tradução de Clara Alvarez (ligeiramente corrigida por JMS)