quarta-feira, janeiro 03, 2007

Bertold Brecht, ou de como um mau poeta é capaz de escrever o melhor poema do séc. XX (ou assim me parece hoje, 3 de Janeiro de 2007).

Aos que virão a nascer
I

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrivel notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que faço me dá direito a comer bem.
Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar estou perdido.)

Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
Roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
Retirar-se das querelas do mundo e passar
Este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência
Pagar o mal com o bem
Não realizar os desejos, mas esquecê-los
Ser sábio é isto.
E eu nada disso sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!

II

Cheguei às cidades nos tempos da desordem
Quando aí grassava a fome
Vim viver com os homens nos tempos de revolta
E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

Comi o meu pão entre batalhas
Deitei-me a dormir entre assassinos
Dei-me ao amor sem cuidados
E olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta
Estava muito longe
Claramente visível, mas nem por isso
Ao meu alcance.E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

(Tradução de João Barrento)