SIM
"Quem não me deu amor, não me deu nada."
Ruy Cinatti
Mãe, ou pai, é quem cria com amor. Fora disso, não existe senão o automatismo biológico da procriação. Como sabiam os filósofos antigos, não é a vida o que importa, mas sim a dignidade com que a mesma é vivida. Uma criança não desejada é uma criança condenada ao pior dos infortúnios: o desamor. É uma criança, portanto, condenada à indignidade. A menos que tenha a sorte “de ser adoptada e blá-blá com amor etc.” A sorte. Mas a dignidade da vida humana não devia ser uma questão de sorte. Devia ser – adivinharam – um direito. E muito mais importante (ou “sagrado”, se quiserem) do que o propalado direito a nascer.
A este respeito, os arcaizantes defensores do Não ao aborto limitam-se a reproduzir chavões de origem religiosa (que muitos confundem com “ética”); pois aquilo a que eles chamam o direito à vida traduz-se, de facto, no mero direito à sobrevivência física, ou seja, à indignidade. (Eu também acho que o mais importante é estar vivo – a minha anedota preferida até é aquela do “Mexeu-se! Mexeu-se!” que por certo conhecem –, mas isso é depois de se ter nascido. Antes, que diferença faz?) E dizem-se então chocados, os do Não, com a ideia de interromper um nascimento; mas não os choca a indigência material, intelectual e moral em que vivem as crianças pobres e não desejadas. (Uma indigência para a qual muitos deles, grandes cínicos, contribuem activamente: legislando, remunerando, despedindo, etc.) É assim, a infelicidade dos outros não os choca, o que os choca é a opinião contrária: a opinião soprada contra as velinhas que os alumiam. Incomoda-os a liberdade dos outros. Assusta-os.
Porque o direito a dispor do seu corpo é, queira-se ou não, uma afirmação de liberdade. Filosoficamente, a coisa põe-se nestes termos: por um lado o direito a nascer, por outro o direito à liberdade sobre o seu corpo. O direito a nascer só se pode “justificar” em termos religiosos; enquanto que a liberdade é um conceito filosófico e político. A natureza é uma armadilha de que não se escapa, sabemos isso, pelo que a liberdade sobre o corpo é sempre condicional. Mas se a natureza, graças à Medicina (invenção, recorde-se, do século XVIII), já não vence todas as batalhas (só a última, a decisiva, ai ai!), se já nos é possível “negociar” com a carcereira natureza, porque haveriam as mulheres de continuar escravas do determinismo biológico? Em rigor, quem aceita combater a natureza com a ajuda da contracepção e da medicina não tem argumentos para proibir o aborto. O que está em jogo, em qualquer tipo de manipulação médica, é sempre a afirmação do homem contra os “abusos” da natureza. A natureza “quer” que as mulheres tenham um filho por ano entre os 13 e os 53, ou assim. Não pode ser, não nos dá jeito nenhum a proliferação caótica. A natureza “quer” que os homens morram de uma apendicite. Não nos dá jeito, também. E por aí fora.
Assim, mais do que o batimento cardíaco, que o bipedismo, mais do que a razão, mais até do que o uso do telemóvel, é o exercício da liberdade que define o homem; e a liberdade é o que caracteriza a vida que é digna de ser vivida. De resto, os médicos sabem disso quando desligam a máquina que mantém artificialmente vivo um doente, ou quando provocam o aborto de um feto mal-formado, ou quando ajudam um doente a suicidar-se. Em todos estes exemplos, aquele ser humano já não pode (ou nunca poderia) ter uma vida digna, uma vida livre: a pessoa em coma está na dependência da sua máquina, tal como o feto mal-formado está condenado à tornar-se num ser totalmente dependente, e o doente terminal está na dependência da natureza e do minuto em que esta decida que o sofrimento dele é já bastante. Razão pela qual, nestes casos, a liberdade e a dignidade do homem são levadas em conta e influem na decisão de interromper a vida. E quem achar que isto é moral e filosoficamente aceitável, não pode condenar a mulher que aborta.
(Curiosamente, a aborto eugénico é candidamente aceite pela maioria dos que fazem campanha pelo Não. O que mais do que uma contradição é um absurdo. De acordo com o meu padrão de valores, o aborto eugénico é bem mais condenável do que o aborto que impede o nascimento de mais uma criança não desejada, pois uma criança deficiente não é necessariamente infeliz, enquanto que uma criança desamada tem tudo para o ser.)
Eu seria capaz de compreender a filosofia (mas não de aceitar a prática proibitória) dos anti-abortistas se eles defendessem, coerentemente, a interdição absoluta de interromper a vida. O pacifismo absoluto dos jainistas parece-me respeitável, mesmo que não partilhe as suas concepções religiosas ou metafísicas. Mas não é o pacifismo que move a maioria dos anti-abortistas, pois muitos deles não sentem qualquer embaraço em aplaudir vigorosamente uma guerra ofensiva ou de ocupação, ou a pena de morte. É nestes “vitalistas selectivos” que o mecanismo da estupidez humana assume contornos irracionais, quase atávicos. Alguns deles chegam a defender a obrigatoriedade de as mulheres levaram a gravidez até ao fim porque uma criança representa mais um “trabalhador”, como dizia há dias uma gaja do PP, preocupada não sei se com a extinção da raça tuga se da mão-de-obra para a sua indústria. Incrível! Mas, enfim, deixá-los.
Gostaria de me alargar um pouco mais sobre este assunto, inesgotável e apaixonante, mas são 2,50, estou certo que já perceberam o meu nada original ponto de vista (apesar do esquematismo, do desalinhavo com que vai para o ar) e por aqui me fico então. Obrigado.
Ruy Cinatti
Mãe, ou pai, é quem cria com amor. Fora disso, não existe senão o automatismo biológico da procriação. Como sabiam os filósofos antigos, não é a vida o que importa, mas sim a dignidade com que a mesma é vivida. Uma criança não desejada é uma criança condenada ao pior dos infortúnios: o desamor. É uma criança, portanto, condenada à indignidade. A menos que tenha a sorte “de ser adoptada e blá-blá com amor etc.” A sorte. Mas a dignidade da vida humana não devia ser uma questão de sorte. Devia ser – adivinharam – um direito. E muito mais importante (ou “sagrado”, se quiserem) do que o propalado direito a nascer.
A este respeito, os arcaizantes defensores do Não ao aborto limitam-se a reproduzir chavões de origem religiosa (que muitos confundem com “ética”); pois aquilo a que eles chamam o direito à vida traduz-se, de facto, no mero direito à sobrevivência física, ou seja, à indignidade. (Eu também acho que o mais importante é estar vivo – a minha anedota preferida até é aquela do “Mexeu-se! Mexeu-se!” que por certo conhecem –, mas isso é depois de se ter nascido. Antes, que diferença faz?) E dizem-se então chocados, os do Não, com a ideia de interromper um nascimento; mas não os choca a indigência material, intelectual e moral em que vivem as crianças pobres e não desejadas. (Uma indigência para a qual muitos deles, grandes cínicos, contribuem activamente: legislando, remunerando, despedindo, etc.) É assim, a infelicidade dos outros não os choca, o que os choca é a opinião contrária: a opinião soprada contra as velinhas que os alumiam. Incomoda-os a liberdade dos outros. Assusta-os.
Porque o direito a dispor do seu corpo é, queira-se ou não, uma afirmação de liberdade. Filosoficamente, a coisa põe-se nestes termos: por um lado o direito a nascer, por outro o direito à liberdade sobre o seu corpo. O direito a nascer só se pode “justificar” em termos religiosos; enquanto que a liberdade é um conceito filosófico e político. A natureza é uma armadilha de que não se escapa, sabemos isso, pelo que a liberdade sobre o corpo é sempre condicional. Mas se a natureza, graças à Medicina (invenção, recorde-se, do século XVIII), já não vence todas as batalhas (só a última, a decisiva, ai ai!), se já nos é possível “negociar” com a carcereira natureza, porque haveriam as mulheres de continuar escravas do determinismo biológico? Em rigor, quem aceita combater a natureza com a ajuda da contracepção e da medicina não tem argumentos para proibir o aborto. O que está em jogo, em qualquer tipo de manipulação médica, é sempre a afirmação do homem contra os “abusos” da natureza. A natureza “quer” que as mulheres tenham um filho por ano entre os 13 e os 53, ou assim. Não pode ser, não nos dá jeito nenhum a proliferação caótica. A natureza “quer” que os homens morram de uma apendicite. Não nos dá jeito, também. E por aí fora.
Assim, mais do que o batimento cardíaco, que o bipedismo, mais do que a razão, mais até do que o uso do telemóvel, é o exercício da liberdade que define o homem; e a liberdade é o que caracteriza a vida que é digna de ser vivida. De resto, os médicos sabem disso quando desligam a máquina que mantém artificialmente vivo um doente, ou quando provocam o aborto de um feto mal-formado, ou quando ajudam um doente a suicidar-se. Em todos estes exemplos, aquele ser humano já não pode (ou nunca poderia) ter uma vida digna, uma vida livre: a pessoa em coma está na dependência da sua máquina, tal como o feto mal-formado está condenado à tornar-se num ser totalmente dependente, e o doente terminal está na dependência da natureza e do minuto em que esta decida que o sofrimento dele é já bastante. Razão pela qual, nestes casos, a liberdade e a dignidade do homem são levadas em conta e influem na decisão de interromper a vida. E quem achar que isto é moral e filosoficamente aceitável, não pode condenar a mulher que aborta.
(Curiosamente, a aborto eugénico é candidamente aceite pela maioria dos que fazem campanha pelo Não. O que mais do que uma contradição é um absurdo. De acordo com o meu padrão de valores, o aborto eugénico é bem mais condenável do que o aborto que impede o nascimento de mais uma criança não desejada, pois uma criança deficiente não é necessariamente infeliz, enquanto que uma criança desamada tem tudo para o ser.)
Eu seria capaz de compreender a filosofia (mas não de aceitar a prática proibitória) dos anti-abortistas se eles defendessem, coerentemente, a interdição absoluta de interromper a vida. O pacifismo absoluto dos jainistas parece-me respeitável, mesmo que não partilhe as suas concepções religiosas ou metafísicas. Mas não é o pacifismo que move a maioria dos anti-abortistas, pois muitos deles não sentem qualquer embaraço em aplaudir vigorosamente uma guerra ofensiva ou de ocupação, ou a pena de morte. É nestes “vitalistas selectivos” que o mecanismo da estupidez humana assume contornos irracionais, quase atávicos. Alguns deles chegam a defender a obrigatoriedade de as mulheres levaram a gravidez até ao fim porque uma criança representa mais um “trabalhador”, como dizia há dias uma gaja do PP, preocupada não sei se com a extinção da raça tuga se da mão-de-obra para a sua indústria. Incrível! Mas, enfim, deixá-los.
Gostaria de me alargar um pouco mais sobre este assunto, inesgotável e apaixonante, mas são 2,50, estou certo que já perceberam o meu nada original ponto de vista (apesar do esquematismo, do desalinhavo com que vai para o ar) e por aqui me fico então. Obrigado.
6 Comments:
só para avisar que lhe roubei a primeira parte do seu texto para por no meu.:)
Meu caro: apesar de muito admirar a facilidade com que a tua pena desliza sobre o papel, ou, no caso concreto, o teu dedilhar stacatto no teclado, não seria necessário uma prosa tão grande sobre um assunto tão simples. A não ser por mero hedonismo estilístico.
A questão que vai ser referendada no próximo domingo é mesmo muito simples e não exige grandes elocubrações filosóficas ou intelectuais.
"Deve uma mulher que pratica o aborto até às dez semanas ser metida na cadeia?" Se achas que sim, vota não, se achas que não, vota sim. Se te é indiferente, abstém-te.
A questão é muito simples e a resposta também. Todo o ruído produzido à volta disto não passa disso mesmo: ruído.
Actualmente, uma mulher que vá a uma abortadeira em condições todas badalhocas pode morrer ou ir para a cadeia. Se o sim ganhar a mulher não precisa de colocar em risco a sua vida pondo-a nas mão de curiosos e arriscando-se depois a ir para os calabouços.
Agora é só votar no Domingo.
Aliás esta situação é semelhante ao consumo daqueles cigarros que fazem rir. Deve o tipo que os fuma ir parar à cadeia?
Parece que já se chegou à conclusão que não. Não é verdade?
Por aqui me fico que o assunto não merece mais palavras.
Vou a uma mariscada para descontrair.
por que é que é uma infâmia os do "não" usarem coisas do Sérgio Godinho (que defende o "sim") e não é uma infâmia usar uma frase do Ruy Cinatti que era claramente (não é preciso procurar muito...) contra os pressupostos do "sim"?
Respondo: Ruy Cinatti já morreu, portanto pode ser avacalhado à vontade...
(só para esclarecer: votarei "SIM"; não concordo com uma série de matérias defendidas por Cinatti - sobretudo por causa do seu catolicismo -, mas não posso deixar passar o aproveitamento da obra de um grande poeta para um fim que certamente o repugnaria)
Alinho com o morto. O arrazoado da natureza, amor, vida é fumo. Os do não é que gostam disso.
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo
Não sei qual seria a posição do R. Cinatti em relação ao aborto. Sendo ele católico, e católico dos anos 40, é bem possível que fosse contra. Mas o verso do Cinatti, por muito que possa pesar ao seu autor que deus o tenha, quer dizer exactamente isso que diz. É um verso perfeitamente unívoco e certamente alusivo à péssima relação que ele teve com o seu progenitor, que apenas lhe deu a vida.
Depois, um autor morto é a pessoa com menos direitos à face da terra. Pode ser revoltante ou não, mas é um facto. A citação é livre. Citar é por definição retirar do contexto. E se fosse necessário ter a certeza de que um dado autor aprovaria o facto de ser citado por nós num determinado contexto, nunca poderíamos citar ninguém. Apesar de o caso do S. Godinho ser algo diferente (pois o que se cita no blogue do Nao é todo um poema, e um poema de uma figura que é publica e militantemente a favor do Sim) não acho que ele tenha motivos para se queixar.O direito de citação é sagrado, e o citador não deve ser reprimido por nenhum código. Excepto se distorce ou trunca um dado texto, modificando-lhe o seu sentido. Os do Não não truncaram o texto do Godinho, tal como eu não trunquei o verso do Cinatti. Logo...
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