sexta-feira, janeiro 12, 2007

Mentira política e Justiça

Se há lugar onde a mentira é particularmente daninha e imperdoável, esse lugar é a esfera política.
De sistemas políticos autoritários não se espera senão a mentira, já que autoridade e hierarquia são em grande parte uma ficção (ver justificação mais adiante), ou seja, uma mentira de classe. Aliás, os poderes autoritários têm ao seu dispôr meios de persuasão mais brutais e mais eficazes do que a palavra, pelo que não se preocupam demasiado com a opinião pública.
Mas a democracia tem obrigação de a recusar, se nos é vendida como o governo de todos por todos (ou isso será já o anarquismo? Hum …) e se todos concordamos que a democracia não pode prosperar onde não existe confiança moral (não confundir com crédito intelectual).
No entanto, dificilmente se encontra pessoa mais mentirosa do que um demagogo. Em democracia, os políticos tendem a ver na mentira um mero instrumento de trabalho, tão inocente e fundamental como o telemóvel ou o spray para o mau hálito. Mas a mentira corrói irremediavelmente todo o sistema democrático. Pois a partir do momento em que se generaliza a certeza de que a política é o reino da mentira, a eleição de representantes políticos deixa de fazer qualquer sentido. E mais ainda quando verificamos que o político mente, não para nos proteger e aos nossos interesses (o que seria quase desculpável), mas para se proteger a si e aos interesses da elite que o financiou e financiará, se o menino se portar bem.

Profissionalmente, a mentira só devia ser tolerada nos médicos e nos padres; isto é, o tipo de mentira compassiva que nos diz que vamos durar mais cinco anos (quando não temos fígado para mais que três meses), ou que podemos morrer descansados porque “death is not the end” como parvamente canta Gavin Friday (a solo). Ou, outro exemplo, a mentira que tenta poupar uma criança ao conhecimento prematuro dos horrores da alma humana (porque “não, não é errado confundir as crianças com anjos”, como muito bem ensina Donny Smith ao cínico de serviço em Magnólia).
Mas a mentira concebida para nos proteger da censura pública, para esconder a mão que lançou a pedra, essa é infantil, cobarde e totalmente mesquinha. Na vida privada, a mentira é muitas vezes inevitável, e pode até ser benfazeja (se compassiva), mas na política (como na literatura ou na ciência), é não só detestável como desprovida de sentido.

A mentira transforma a democracia num território minado. Os ideólogos da Situação costumam justificar a sua necessidade com a sentença (falsa e mentirosa, claro) de que o ser humano é naturalmente (e por isso irremediavelmente) menor. É essa a astúcia dos intelectuais conservadores: pressupor (com agradável pessimismo) que o vulgo é por natureza fraco, egoísta, cruel, intolerante, preguiçoso, estúpido e demasiado ignorante para decidir o que é melhor para si. Uma tese (feliz coincidência!) muito conveniente para quem reivindica para si o papel de tutor de menores. Mas já se sabe que, nisso como noutras coisas, os intelectuais tendem a ser como o vulgo, acreditando sempre no que mais lhes convém.

(Continua)