quarta-feira, março 15, 2006

Grandes Aberturas # 15

"Até há não muito tempo sonhei com frequência que tinha de voltar para o exército. Por engano tinham-me licenciado antes do tempo, e reclamavam-me imediatamente, ou então durante o meu serviço militar fora cometido um erro administrativo que o invalidava, um erro de segunda ordem, e por isso inadvertido durante anos, mas ao mesmo tempo tão grave que tornava inevitável o meu regresso ao quartel.
Com o aterrador imediatismo dos sonhos, que sobrepõe consequências e causas em fracções de segundos, já me via formado na parada para o toque de alvorada num amanhecer chuvoso e frio de San Sebastián, mas ao olhar para o chão dava-me conta de que não tinha calçado as botas militares, mas sim os meus sapatos pretos de muitos anos depois, e que parte da minha indumentária era civil. Por um descuido inexplicável, por não estar acostumado, ia para a prisão, como o recruta que (...) se esquece de saudar regulamentarmente um superior e lhe diz bom dia, merecendo um castigo fulminante.
Recuperava no sonho outra faceta do medo militar, o medo de ser único nalguma coisa, de me encontrar sozinho entre os outros, que não teriam a menor compaixão por mim, porque no exército uma das primeiras coisas que se perdia era a piedade (...) À minha volta, imóveis nas filas, os outros soldados mostravam uma uniformidade sem mácula, uma quietude repulsiva e perfeita de colaboracionistas.

Antonio Muñoz Molina - Ardor Guerreiro (Tradução de Maria Isabel Barreno)