Post (de alta tensão)
A notícia hoje divulgada pelo “Público”, de que 100 mil portugueses tidos por fundamentais serão vacinados no caso de a pandemia das aves atingir este católico torrão lusitano, é das coisas mais extraordinárias que já me foi dado ler na imprensa. Tudo nela suscita perplexidade, a começar pelos 100 mil “fundamentais”.
Um anúncio como este é de molde a lançar os portugueses em profundos e dolorosos exames de consciência. Algo do género: Serei eu fundamental, ou não passo de uma quinta roda no carro da nação? Serei digno de figurar entre os eleitos para o embarque nesta nova Arca de Noé? Quem é mais fundamental: eu, que todas as noites varro as ruas da cidade, ou o vereador responsável pelo pelouro dos lixos urbanos? Eu, segurança num hotel de cinco estrelas, ou as estrelas a quem garanto o seguro sono que merecem? Eu, tu, ele, nós, vós, eles, ou ninguém? Que fiz eu da minha vida? Que fiz eu, ai! Oh, como me arrependo de não ter sabido fazer-me fundamental, imprescindível, de me não ter sabido adaptar aos critérios de salvação pública! Ai, ai e novamente ai!
Assim, portugueses, é chegado o momento de cada um de nós rever com sinceridade o seu percurso existencial e, em plena consciência, decidir se a sua vida é ou não fundamental para o futuro da pátria. Pela parte que me toca, e lamento ter que o confessar, afirmo desde já a minha dispensabilidade. Um país que sobreviveu sem mim oitocentos e vinte anos, conseguirá decerto aguentar-se mais alguns séculos depois de a galinha da vizinha ter acabdo comigo. Mas poderemos prescindir com igual facilidade da Agustina, do C. Ronaldo, do Rodrigo Leão? Ai, que ferozes batalhas se avizinham, pelo direito à miraculosa injecção de retrovirais! Não vai ser fácil para a futura Comissão de Sábios decidir quem é ou não fundamental, não vai. Será o Vítor Baía menos fundamental que o Marques Mendes, agora que o Helton se lesionou e a nossa vantagem pontual se evapora mais depressa do que o whisky nas garrafas cá de casa? E se a Comissão decidir que José Sócrates tem que ceder o seu lugar a Siza Vieira? E como, já agora, se terá chegado a esse número, 100 mil? Imaginemos que se conclui serem apenas 99 999 os fundamentais, quem ficará com a vacina sobrante? Ou então, situação inversa, que fazer se a Comissão concluir que afinal os fundamentais são 100 001? Que fazer ao fundamental excedente? Deixá-lo de fora? Mesmo que seja o Eusébio? E se forem 100 002? Ou 100 112? Tantas perguntas, tantas equações, tantas; e se há coisa que eu não queria estar na pele de um sábio (nem tal era possível, de resto), posto que a aritmética (ou este mix de ética e aritmética) nunca foi o meu forte.
O mais sensato, creio, seria estabelecer um sistema de quotas: tanto para os políticos (0,0001 %, por exemplo), tanto para os guarda-redes, tanto para os canalizadores (poderá Portugal ter futuro sem bons canalizadores?), tanto para o electricistas, os trapezistas, os anestesistas, e por aí fora (com exclusão de jornalistas e advogados, se fazem a fineza), até se atingir o sacro número de 100 mil, esse 1% da população portuguesa com que faremos (ou melhor, fareis) um Portugal asseado, finalmente. Boa sorte a todos.
Um anúncio como este é de molde a lançar os portugueses em profundos e dolorosos exames de consciência. Algo do género: Serei eu fundamental, ou não passo de uma quinta roda no carro da nação? Serei digno de figurar entre os eleitos para o embarque nesta nova Arca de Noé? Quem é mais fundamental: eu, que todas as noites varro as ruas da cidade, ou o vereador responsável pelo pelouro dos lixos urbanos? Eu, segurança num hotel de cinco estrelas, ou as estrelas a quem garanto o seguro sono que merecem? Eu, tu, ele, nós, vós, eles, ou ninguém? Que fiz eu da minha vida? Que fiz eu, ai! Oh, como me arrependo de não ter sabido fazer-me fundamental, imprescindível, de me não ter sabido adaptar aos critérios de salvação pública! Ai, ai e novamente ai!
Assim, portugueses, é chegado o momento de cada um de nós rever com sinceridade o seu percurso existencial e, em plena consciência, decidir se a sua vida é ou não fundamental para o futuro da pátria. Pela parte que me toca, e lamento ter que o confessar, afirmo desde já a minha dispensabilidade. Um país que sobreviveu sem mim oitocentos e vinte anos, conseguirá decerto aguentar-se mais alguns séculos depois de a galinha da vizinha ter acabdo comigo. Mas poderemos prescindir com igual facilidade da Agustina, do C. Ronaldo, do Rodrigo Leão? Ai, que ferozes batalhas se avizinham, pelo direito à miraculosa injecção de retrovirais! Não vai ser fácil para a futura Comissão de Sábios decidir quem é ou não fundamental, não vai. Será o Vítor Baía menos fundamental que o Marques Mendes, agora que o Helton se lesionou e a nossa vantagem pontual se evapora mais depressa do que o whisky nas garrafas cá de casa? E se a Comissão decidir que José Sócrates tem que ceder o seu lugar a Siza Vieira? E como, já agora, se terá chegado a esse número, 100 mil? Imaginemos que se conclui serem apenas 99 999 os fundamentais, quem ficará com a vacina sobrante? Ou então, situação inversa, que fazer se a Comissão concluir que afinal os fundamentais são 100 001? Que fazer ao fundamental excedente? Deixá-lo de fora? Mesmo que seja o Eusébio? E se forem 100 002? Ou 100 112? Tantas perguntas, tantas equações, tantas; e se há coisa que eu não queria estar na pele de um sábio (nem tal era possível, de resto), posto que a aritmética (ou este mix de ética e aritmética) nunca foi o meu forte.
O mais sensato, creio, seria estabelecer um sistema de quotas: tanto para os políticos (0,0001 %, por exemplo), tanto para os guarda-redes, tanto para os canalizadores (poderá Portugal ter futuro sem bons canalizadores?), tanto para o electricistas, os trapezistas, os anestesistas, e por aí fora (com exclusão de jornalistas e advogados, se fazem a fineza), até se atingir o sacro número de 100 mil, esse 1% da população portuguesa com que faremos (ou melhor, fareis) um Portugal asseado, finalmente. Boa sorte a todos.
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