sexta-feira, abril 28, 2006

Grandes Aberturas # 23

Sendo o termo da vida limitado, não tem limite a nossa vaidade; porque dura mais do que nós mesmos, e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova, do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para com a fé dos mármores fazerem seus nomes imortais: querem que a sumptuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fossem relíquias as suas cinzas, e que corra por conta dos jaspes a continuação do respeito. Que frívolo cuidado! Esse triste resto daquilo que foi homem, já parece um ídolo colocado num breve, mas soberbo domicílio, que a vaidade edificou para habitação de uma cinza fria, e desta declara a inscrição o nome, e a grandeza. A vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura.

Matias Aires - Reflexões sobre a Vaidade dos Homens

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A enorme cabeçorra rosa de Ramsés II no British Museum atesta isso mesmo (na variante do poder). A cabeçorra ficou, mas onde estarão o carbonato e o fosfato de cálcio dos ossos dele, e onde a vida dos seres que o rodearam? Fazendo parte, menos que microscopicamente, de outros seres, refiro-me aos sais de cálcio e de fósforo. A transmigração das almas, que afinal não é de almas mas de sais, presentes por exemplo nos ossos de um boi que comeu a erva que o excremento de outro boi muito anterior adubara com os sais de um outro ainda mais antigo, através da erva que por sua vez este tinha comido, e assim sucessiva e inimaginadamente, Ramsés.

sábado, abril 29, 2006 6:11:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A iminência da nossa própria morte suscita um derradeiro momento de escolha entre alternativas: ou decidimos passar-lhe a perna, escapando aos rituais fúnebres (fugindo, como alguns animais, para lugares esconsos), ou aceitamos que há-de haver alguém interessado em exibir a nossa imagem defunta.

Nem todos o farão por puro egoísmo, pela projecção vaidosa do seu eu entre os demais. Pode a ostentação ser uma mera chamada de atenção aos distraídos - finou-se uma pessoa, conheceste-a? Que sabias dela? Tão pouco?

Não é assim sempre? Não dedicamos nós tempo a menos a toda a gente? Não merece toda a gente mais tempo? Não merece toda a gente ser conhecida de toda a gente?
Quando falece um indivíduo, há uma experiência de vida que deixa de ser transmissível, pela visão do próprio. Evoluiríamos muito mais depressa como civilização, se aprendêssemos desde cedo a valorizar o vivido pelos outros. Daí o óbvio interesse da História, da Arte, da Leitura.

É isso que a sumptuosidade de alguns rituais pode significar - aqui está mais um ser pensante e sentinte, que deveria ter sido conhecido de muita gente, do mundo, se possível, porque, lá está, foi aonde nunca fomos, viu o que nunca vimos, etc. etc.

Sumptuoso ou não, o lugar assinala o poder material,inevitavelmente, mas também a oportunidade perdida de enriquecimento pessoal, pelo contacto com o outro. Quão mais alto o afirmarmos, mais compreensível se torne, talvez. Não é vaidade, é convicção e urgência.

segunda-feira, maio 01, 2006 12:23:00 da manhã  
Blogger JMS said...

Estou em crer que Matias Aires não tinha nada contra os rituais funerários, apenas contra a ostentação e o orgulho que, em alguns, até na morte se manifesta. Uma lápide significa um comovente "lembrem-se de mim", mas um mausoléu o que quer dizer é "vejam como sou grande e sublime e como, até na morte, sou superior a todos vós". Matias referia-se, creio, apenas a esse sentimento de vaidade e de orgulho que quase pretende negar a morte e o lugar-comum cristão da morte como "grande niveladora".
Em todo o caso, a frase foi colocada aqui apenas como isco, para que um eventual leitor possa vir ai encontro de uma obra que merecia ser mais conhecida do que é.
Obrigado pelos comentários.

segunda-feira, maio 01, 2006 1:42:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Retomo o comentário, porque a vida me tem feito pensar na morte e há duas coisas que tenho observado com intensidade.
Primeira: os mausoléus nem sempre falam em nome do defunto, por vezes, reflectem o valor que os que lhe sobrevivem lhe atribuem. E mais não são (ou podem não ser) do que a expressão poderosa do mesmo sentimento que domina quem menos economias detém. No fundo, se tal fosse possível, todos gostaríamos de construir um mausoléu para toda a gente, porque toda a gente o merece aos olhos de alguém. Por isso não vale muito a pena pregar contra quem ostenta aquilo que todos gostariam de ostentar - o valor da vida humana, simplesmente.

Segunda: é claro que a ostentação é muitas vezes resultado de sofrimento atroz. José Gomes Ferreira lembra-o em

Não, não queremos cantar

(...)
Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

(...)
Aos gritos como escravos que arrastam as pedras no Deserto//
para o grande momumento à Dor Humana do Egipto.
(...)

domingo, maio 14, 2006 10:33:00 da tarde  

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