segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Teaser

«Tu não te interessas por nada. Não vais passar a vida inteira a ler, ou vais? O que é que tu queres afinal? As tuas notas não são grande coisa, mas não és estúpido. Tens de ter um objectivo na vida pelo qual tens de lutar, uma coisa a que te possas agarrar, e és tu que tens de procurá-lo e encontrá-lo, mais ninguém. Doutra maneira, a tua vida não vale nada, não passa de uma sucessão de dias que se arrastam, cinzentos e desenxabidos. Não haverá mesmo nada que te interesse? Desenhas tão bem, porque não te dedicas ao desenho?»
«Como o Tio Léon, Mamã? É ele o meu modelo?»
«O Léon fez umas aguarelas magníficas que hão-de ficar para a posteridade, encaixilhadas por aí nas casas das pessoas. A arte é isso.»
«E se todas as casas arderem, ficarem em ruínas?»
«Todas?»
«Sim. Onde vai parar a arte do Tio Léon?»
«Isso nunca acontecerá. Não pode ser. As pessoas também não são assim tão estúpidas. Lançar bombas, sim, mas com peso e medida.»

Hugo Claus - O Desgosto da Bélgica (Tradução de Ana Maria Carvalho)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

entre a graça explosiva com aguarelas inteligentes de permeio e os instantâneos que perpetuam o movimento daquilo que capturam, prefiro os últimos, o que indica, para meu - por enquanto eterno - desagrado, que não me libertei de todos os estilhaços. a ler, a ler:


Leio só livros usados
Encosto-os ao cestinho do pão, mudo a página com um dedo e ela fica quieta. Assim mastigo e leio.
Os livros novos são impertinentes, as folhas não ficam quietas quando as passamos, resistem e temos de carregar para que fiquem em baixo. Os livros usados têm as costas frouxas, as páginas vão-se lendo sem voltarem a erguer-se.
Por isso na tasca ao meio-dia sento-me na cadeira do costume, peço uma sopa e vinho e leio.
São romances de mar, de aventuras na montanha, nada de histórias de cidade, que já as tenho à minha volta.
Levanto os olhos para um pouco de sol que se reflecte no vidro da porta da entrada, por onde entram os dois, ela com ar de vento pelas costas, ele com ar de cinzas.

Erri de Luca - Três Cavalos (Tradução de José Lima)
posted by JMS at 6/12/2006

quinta-feira, março 01, 2007 11:42:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

peso e medida, peso e medida. ía hoje de manhã a conduzir as minhas filhas para a escola quando, do rádio, o locutor lança que "era um mundo acabado de nascer e algumas coisas ainda não tinham nome, por isso era preciso apontar para elas para as mencionar". tive que abrir a boca, porque a emoção por dentro, a emoção por dentro era tanta que não cabia em mim.

sexta-feira, março 02, 2007 10:57:00 da manhã  

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