domingo, fevereiro 26, 2006

POETAS, GESTORES, CORREIOS DE DROGA


Os poetas, tal como os gestores ou os correios de droga,
são almas simples, que valorizam sobretudo a amizade
do dinheiro, a louça cor de amêndoa, o vício de viver.
Dobradiças oleadas e perfumes de renome.
Um poeta é um animal feito de palavras que perfeitamente

servem ao pedreiro, ao enxoval, ao caracol: sílabas macias,
untuosas, radiantes como folhos de cortina. E por que havia
de ser doutra maneira, perguntamos? Sofrimento há que chegue
para todos. Não me falem em quinhentos mil casebres,
pois a minha namorada, o meu patrão, a porcaria do motor,

este calor na cabeça. Ninguém se dá, é bom de ver,
como culpado. Somos todos de direita, todos; pois outra coisa
não se chama viver. E mesmo os que dizemos ser de esquerda
temos, como toda a gente, a grande sageza de não fazer contas.
Sabemos como é frágil o sossego, como é espantadiço.

É com fleuma e bom-humor que recebemos o azar
dos que não cabem à mesa, o desmoronamento dos que vivem
pouco, podre, mal. Entre burros, egoístas e vaidosos,
é preciso ser alguém para fugir de ser feliz. Muito raro,
na verdade. Oh não te finjas, leitor, surpreendido.

Não me digas que pensavas que os homeros eram feitos
às rodelas, com recheio de bombom. Conta-me outra.
Lê-os, se achas que te podem ser úteis, mas não faças
grande fé nas virtudes que tangem. Isso é coisa
que se aprende, corriqueiros exercícios de entretém.

E se vires um crítico a enrolar a língua na palavra “poeta”,
não ligues. São mais sonsos do que parecem, os críticos.


JMS

Mouse Painting # 8

Visão Celestial

JOAN BROSSA



Roda

Mouse Painting # 7

Mas onde?

ANNA SWIR

ELA NÃO SE LEMBRA









Ela foi uma madrasta terrível.
Agora que está velha morre lentamente
numa choça vazia.
Estremece
como uma folha de papel queimado.
Não se lembra de ter sido terrível
Apenas sabe
o frio que sente.


Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva

BRONISLAW MAJ

UMA FOLHA








Uma folha, uma das últimas, solta-se de um ramo de carvalho:
rodopia no ar transparente de Outubro, cai
no meio de outras folhas, detém-se, torna-se invisível. Ninguém
admirou o combate, arrebatador, que ela travou com o vento
nem seguiu o seu voo, ninguém a distinguiria agora
no meio das outras folhas, ninguém viu
aquilo que eu vi. Eu sou
o único.


Versão (a partir do imglês) de José Miguel Silva

ZBIGNIEW HERBERT

ELEGIA DE FORTINBRAS



para C.M.

Agora que estamos sós podemos falar príncipe de homem para homem
ainda que estejas tombado nas escadas e vejas o mesmo que uma formiga morta
nada senão um sol negro com seus raios quebrados
As tuas mãos sempre que pensava nelas faziam-me sorrir
e agora que jazem sobre a pedra como ninhos derrubados
parecem tão indefesas como antes O fim é precisamente isto
As mãos caídas A espada caída Caída a cabeça
e os pés do cavaleiro enfiados em macias pantufas

Sem nunca teres sido soldado terás um funeral com honras militares
o único ritual que mais ou menos conheço
Não haverá círios nem cantos apenas mechas e tiros de canhão
crepes arrastados pelas ruas elmos botas cavalos salvas de artilharia
tambores e tambores nada de muito refinado eu sei
serão essas as minhas manobras antes de tomar o poder
há que agarrar a cidade pelo pescoço e sacudi-la um pouco

De qualquer modo terias que morrer Hamlet não foste feito para a vida
acreditavas em noções cristalinas e não no barro dos homens
sempre em sobressalto como num sono perseguias quimeras
mastigavas o ar com voracidade para depois o vomitar
das coisas humanas não sabias nada nem sequer respirar sabias

Agora alcançaste a paz Hamlet levaste a cabo o que te competia
e alcançaste
a paz O resto não é silêncio é antes pertença minha
escolheste o papel mais fácil o golpe elegante
mas o que é uma morte heróica comparada com a eterna vigília
tendo na mão uma fria maçã um alto cadeirão
com vista para o formigueiro e para a esfera do relógio

Príncipe adeus tenho assuntos a tratar a questão dos esgotos
o decreto respeitante a prostitutas e mendigos
há também que elaborar um melhor sistema prisional
já que tu próprio o disseste e bem a Dinamarca é uma prisão
Vou tratar dos meus assuntos Esta noite nasceu
uma estrela chamada Hamlet Aqui nos separamos
as coisas que deixarei ao morrer não serão dignas de uma tragédia

Pessoas como nós não se dão as boas vindas nem se despedem vivemos
em arquipélagos
e essa água essas palavras que podem elas fazer príncipe que podem


Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Mouse Painting # 6


Repreensão

Mouse Painting # 5

Seis figuras tristes

Mouse Painting # 4
















A Dream come True

terça-feira, fevereiro 21, 2006

JOAN BROSSA


Senhor

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

JOAN BROSSA

Merda

JOAN BROSSA

Funcionário

JOAN BROSSA

Dado Redondo

JOAN BROSSA


Eclipse

Mouse Painting # 3

O Crime


Mouse Painting # 2

Problemas Sérios





Mouse Painting

Onde tudo começa


domingo, fevereiro 19, 2006

DOIS POEMAS SÂNSCRITOS

Eu sou tu e tu és eu:
concordávamos outrora.
Não sei que aconteceu.
Sei apenas que, agora,
tu és tu e eu sou eu.
(Bhartrhari)


*

Concede-me, Fortuna, outra provação,
escolhe para mim outro destino
qualquer coisa que não isto, isto não:
ser poeta num país de filistinos.
(Anónimo)



Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva

ZBIGNIEW HERBERT

PEDRA




A pedra
é uma criatura perfeita

igual a si mesma
consciente dos seus limites

rigorosamente preenchida
de pétreo sentido

com um odor que não lembra nenhum outro
que não assusta ninguém que não desperta o desejo

o seu calor a sua algidez
são justas e plenas de dignidade

sinto um pesado remorso
se na mão a sustenho
transmitindo um falso calor
ao seu nobre corpo

- As pedras não se submetem
até ao final olharão para nós
com um olhar límpido e muito sereno


Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva

sábado, fevereiro 18, 2006

ZBIGNIEW HERBERT

CONJECTURAS SOBRE BARRABÁS




O que aconteceu a Barrabás? Pergunto ninguém sabe
Liberto das suas grilhetas seguiu por uma estrada branca
pode ter virado à direita seguido em frente virado à esquerda
rodopiado nos calcanhares pode ter cantado feliz como um galo
Imperador de suas mãos e de sua cabeça
Único tutor de seu próprio alento.

Pergunto porque de certo modo participei no caso
Atraído pela multidão em frente ao palácio de Pilatos também eu
gritei como os demais Barrabás soltem Barrabás.
Todos gritavam e mesmo que não tivesse eu gritado
teria igualmente acontecido o que devia acontecer

Talvez Barrabás tenha regressado ao seu bando
Nas montanhas assassina de modo expedito rouba com rigor
Ou talvez tenha aberto uma oficina de oleiro
e lave no barro criador
as suas mãos manchadas de crimes
É aguadeiro condutor de mulas usurário
dono de navios – num deles viajou Paulo em direcção a Corinto

ou então – o que não é impossível –
tornou-se um valioso espião a soldo dos romanos.

Contemplai admirai o espantoso jogo do destino
os acasos do possível os sorrisos da fortuna


Enquanto o Nazareno
ficou sozinho
sem alternativa
no seu abrupto
caminho
de sangue



Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva

ZBIGNIEW HERBERT

O MONSTRO DO SR. COGITO




Felizardo S. Jorge
da sua sela de cavaleiro
podia calcular com rigor
a força e os movimentos do dragão

o primeiro preceito da estratégia
é a correcta avaliação do inimigo

o Sr. Cogito encontra-se
em posição menos favorável

sentado como está na sela
baixa de um vale
coberto por espesso nevoeiro

é lhe impossível divisar
os ferozes olhos
as garras vorazes
as fauces

através do nevoeiro
o que vemos é somente
a cintilação do nada

o monstro do Sr. Cogito
não tem dimensões

é difícil descrevê-lo
escapa à definição

é uma espécie de imensa depressão
que se estende sobre a terra

não se deixa trespassar
por uma pena
uma lança
um argumento

se não fosse pelo peso sufocante
e pela morte que produz
poderíamos pensar
que se trata de uma alucinação
na cabeça de um doente

mas existe
existe de certeza

enche como fumo
casas templos mercados

envenena os poços
destrói as estruturas do pensamento
cobre de bolor o pão

a prova da existência do monstro
são as suas vítimas

é uma prova indirecta
mas suficiente



2


as pessoas razoáveis dizem
que é possível conviver
com o monstro

basta que evitemos
movimentos súbitos
súbitos discursos

em caso de perigo
assumir a forma
de uma pedra de uma folha

dar ouvidos à prudente Natureza
que aconselha o mimetismo

suster a respiração
fingir não estar aqui

ao Sr. Cogito porém
não lhe agrada dissimular

gostaria de defrontar
o monstro
em terra firme

sai então de madrugada
em direcção aos subúrbios adormecidos
cautelosamente armado
com um longo objecto pontiagudo

chama pelo monstro
nas ruas desertas

desafia o monstro
insulta o monstro

como intrépido soldado
de um exército que não existe

grita
aparece miserável cobarde

através do nevoeiro
tudo o que vemos
é a goela gigantesca do nada

o Sr. Cogito quer enfrentar
esse combate desigual

e que tivesse lugar
o mais depressa possível

antes que aconteça
sucumbirmos por inércia
a uma morte banal sem glória
sufocados pelo informe



Versão (a partir do inglês) de José Miguel Silva