segunda-feira, março 27, 2006

Grandes Aberturas # 19

1847, 17 de Marzo, Kazán
Hace seis dias que ingresé en la clínica, y durante estos seis dias me he sentido satisfecho de mí mismo. Les petits causes produisent de grands effets. Pesqué una gonorrea por ele motivo, ya se entiende, por el que se pesca; y esta circunstancia trivial me dio el impulso para subir el escalón en el que había puesto un pie hace mucho tiempo, pero adonde no había llevado todo mi cuerpo (probablemente porque puse de forma equivocada el pie izquierdo en vez del derecho). Aquí estoy absolutamente solo, nadie me molesta, no tiengo servientes, nadie me ayuda y, por lo tanto, nada ajeno ejerce ninguna influencia sobre mi razón o mi memoria, y mi trabajo debe necesariamente avanzar. Pero la mayor ventaja es que he podido darme cuenta con toda la claridad de que la vida desordenada, que la mayor parte de la gente interpreta como una consequencia de la juventud, no és otra cosa que la consequencia de una precoz corrupción del alma.

Lev Tolstói - Diarios (Edición y Traducción de Selma Ancira)

sexta-feira, março 24, 2006

Grandes Aberturas # 18

Aí vêm eles, marchando para a luz do sol americano. Avançam em grupos de dois, eterno casal, pelo caminho que se avista para além da cerca, no centro-esquerdo do campo. A música arrasta-os através dos relvados, às dúzias, às centenas, demasiados já para se poderem contar. O ajuntamento é tão cerrado, atravessando o vasto círculo dos terrenos anexos, que se dá o efeito de uma metamorfose. De uma série de pares ligados, transformam-se numa onda contínua, cada vez mais grossa, cobrindo de branco e azul-marinho o espaço envolvente.
Observando tudo desde a bancada central, o pai de Karen não pode deixar de pensar que é precisamente essa a questão. Eles formam agora um enorme corpo, uma massa indiferenciada, o que lhe transmite um certo desconforto. Aponta os binóculos para uma rapariga, e outra, e outra ainda. Tantas fileiras, e tão cerradas. Nunca viu nada assim, nem sequer imaginava que fosse possível. Não foi o espectáculo que o trouxe ali , mas este começa a provocar-lhe estupefacção.

Don DeLillo - Mao II (Tradução de José Miguel Silva)

Grandes Aberturas # 17

Todas as pessoas que conheceram Franz Kafka na juventude ou na maturidade, ficaram com a impressão estar circundado por uma "parede de vidro". Estava ali, atrás do vidro transparentíssimo, caminhava graciosamente, gesticulava, falava, sorria como um anjo meticuloso e ágil, e o seu sorriso era a a flor derradeira nascida de uma gentileza que se dava e logo se retirava para se apagar e fechar ciosamente em si mesma. Parecia dizer: "Sou como vós. Sou um de vós. Sofro e gozo do mesmo modo que vós." Mas quanto mais participava no destino e no sofrimento dos outros, tanto mais se excluía do jogo, e aquela sombra subtil de convite e de exclusão a aflorar-lhe os lábios assegurava que nunca teria podido estar presente, que habitava longe, muito longe, num mundo que nem sequer lhe pertencia.

Pietro Citati - Kafka (Tradução de Ernesto Sampaio)

terça-feira, março 21, 2006

Marin Sorescu

UNDER THE DOOR


The day of today
has been delivered to me as usually
under the door.

I put my glasses on
and begin to read.

Nothing special from what I see...
It says I am going to be a little sad by noon,
no reason specified.
And I shall continue to love light
from where I stopped yesterday.

The external affairs page informs me
about the discussions I am going to have
with the water, the mountains and the air
regarding their absurd request
to enter my blood and my brains.

And then the usual news
about my energy for work,
the walk to buy bread,
about good humor
(but they don't say anything
about the situation inside my liver).

Where is it printed, this life of mine,
that is so full of unbelievable mistakes?


Translated by Loredana Tiron-Pandit

segunda-feira, março 20, 2006

William Henry Fox Talbot

















The Open Door, April 1844

Emanuel Jorge Botelho

LORENA



Contigo fui dando
um nome a cada dia
em nome de mim
por causa do medo

arei o sossego
com o chegar dos teus dedos
lavados na terra
enxutos na alva


*

eu nada sabia
do rumor das asas
até tu chegares
à sombra dos meus passos

porque tudo me era
amargo de luz
como cinza de mel
na páscoa da pele


*


Contigo fui dando
linhas de pão
às palmas do céu
à fome da sorte

e o meu longe coube
perto do sol
quando o teu pulso soube
rodar a claridade


*

eu tinha nos ombros
um livro encerrado
até os teus olhos
me darem as palavras


*

Contigo fui dando
a tudo o teu nome
em nome de nós
por causa de mim.

domingo, março 19, 2006

Joaquim Manuel Magalhães

LAMINAGEM


Um país agora este imenso aterro
teve alguma vez colinas e montados
onde o olhar demorava, adormecia
e seguia uma alegria viandante?
Ou gente que chegasse a qualquer mar
de que não quisesse logo fugir?
Só o pastoril decrépito o suspirava.

Teve o que todos tinham, em quantidade escassa,
até cobrir-se de desterro e de ilegais
e em pano de fundo esse lagar
de suicidas e débitos e primeiras segundas gerações.
A farpa de aceitação de quem consome
o sem destino da consciência.
Um país; tornou-se um assassino.

Viverei os poucos verões até morrer
com este mundo de agressão em cerco.
Eu queria outro país, outro lugar
e tenho este infortúnio de leis amarrotadas
que não cumprem nem o violento nem o clandestino.
Um país de acasos,
um parque de campismo selvagem, um cimento apodrecido,
a música de sem abrigos nas estações de metro
enquanto não chegam comboios avariados
às plataformas de arte depredada,
um esboroamento sanguinário.
Até a linguagem que me ergueu
me sabe a sarro e a arrabalde.

Não fossem as obrigações que nos garrotam
nos fazem monstros com a lassidão de herbívoros
talvez pudesse ter o interior abandonado
e chegasse a faca do sol e me cortasse
noutra penúria mais serena.

Ainda que me digam que não olhe,
eu vejo. Ainda que me digam faz ginástica
e a depressão desaparece, nada me resolve.
Os ruídos sobem de qualquer lugar,
sintetizadores, martelos, desabamentos
uma percussão alheia a qualquer justiça.
Nenhuma janela que não fale
da construção administrativa dos piores instintos.
Todo o lixo do humano feito sebo
em qualquer lugar. Ainda que me digam
que vivemos em democracia eu digo
que não sei. Nem direitos nem deveres.
Um sem remédio ancestral.

Morreu a casa. Matou-a
o que lhe coube por contemporâneo
contra a placidez. Os autorizados
pelo conluio e pela votação.
Morreu a casa. E o pior
é não poder partir. Os laços
já se juntaram em anestesia. Preso
por outro amor, que não entende,
que não ouve como a casa já morreu.

A alguns vemo-los em qualquer pousio
depois de fecharem as lojas
e nem se sabe o que vemos.
Aos balcões de cafés de azulejo,
com telemóveis pendurados nos cintos
e os cartões de crédito em dente na carteira.
Riem-se e batem nas costas
uns dos outros, entreolham e vigiam
se alguém diverso se aproxima
para largarem uma troça arcaica, e comem
com essa fome dos que não sofreram ainda
inquietações laborais ou crêem que virá
depressa o primeiro emprego.

Ao olhá-los melhor, aos seus afectos
de pessoal especializado em escuras economias
adicionais, vejo-os depois no verão.
Ao deus dará em todos os lugares,
em tendas velhas, em rulotes,
sabe-se lá onde vão cagar. E as mulheres
com os sinais exteriores da aspereza.
E as asas do inverno marítimo
auguram aluimento.

Eu queria que na cabeça parasse
o furor de tudo o que tomba,
a derrota do dia a dia,
mas será sempre o cabide do tempo
quem estende as garras
para nos alhear.
E os e-mail atravessam zonas sem remendo,
choças de tijolo com roupas a secar.

Assim armado o país.
As gentes em catástrofe deslocam-se,
deixam por testemunho o abandono e a inépcia.
Uma a uma, uma paisagem é trucidada.
Inchou a autarquias o país.
Atravessam-no a miséria e algum dinheiro
insolentes.
Um assassino
espreita outro assassino.

Os que destroem agora
podem exigir os torcionários que virão,
pois quem destrói pressente um chefe
e vai servi-lo.
E muitos hão-de sempre ser as vítimas
da liberdade que consente a violência
da violência que não consente a liberdade.
Um assassino o país. Com as suas leis
inúteis, a sua ordem por cumprir.

Só nos resta esperar então morrer?

sábado, março 18, 2006

Ele há fotografias que são condecorações














Buenaventura Durruti

João Miguel Fernandes Jorge

JANTAR EM ALCABIDECHE


Estavam os meus amigos. E, todos, mais
ou menos bêbados. As mãos brincavam com as facas,
apertavam os copos entre os
dedos, espremiam limão sobre os peixes
grelhados. Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os ternos e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia; e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.
Depois, não há como o álcool,
o vinho branco escolhido - que não fora
excelente - para fazer querer
ser o eu presente o verdadeiro eu;
e que, até então, sempre permanecera
escondido.
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão,
Riem e chegam mesmo a participar, felizes,
na união em cada um;
meio perdidos no seu sonho de representação
de si, não prcuram mais do que provar, e
provar aos outros, uma única coisa: cada um
é o mais fiel naquele jantar.
Eu, quase sempre, permaneci alheio e
olhava-os, como vocês, leitores,
nos estão a olhar agora.

sexta-feira, março 17, 2006

BUENAVENTURA DURRUTI




Neste ano de 2006 cumprem-se 70 anos da morte do anarquismo, na figura de Buenaventura Durruti. De todos os dramas da história política do século XX, o dessa morte é decerto um dos mais desconhecidos e dos menos lamentados. Talvez seja um exagero afirmar que o anarquismo morreu em Novembro de 1936 (até porque uma ideia não é coisa que se elimine facilmente, mesmo para quem manipula sofisticadíssimos arsenais de propaganda), mas, em todo o caso, ninguém pode negar que, se houve um momento em que o sonho libertário conseguiu de algum modo materializar-se (ou começar a – antes de a santa aliança de comunistas, católicos e liberais o terem liquidado), esse momento foi o Verão de 1936, quando os operários e camponeses da Catalunha e de Aragão decidiram tomar em suas próprias mãos a administração das coisas que lhe diziam respeito: o seu trabalho, a sua educação, a sua moral, a sua, enfim, vida política; sem patronatos de nenhuma espécie, e orientados pela convicção (sinistra, no entender da santa aliança acima mencionada) de que patrão deve cada um sê-lo, mas apenas de si próprio.
Consciente da importância, não diremos histórica (mas a História é quase sempre a mentira que os vencedores transmitem aos seus descendentes, n’est ce pas?), mas pessoal e sentimental do evento, e sendo morfologicamente incapaz de um encolher de ombros, o blogue Ad Loca Infecta anuncia urbi et orbi a sua intenção de zelar para que este evento não passe completamente despercebido na blogosfera.
Assim, declaramos aberta a celebração do Ano Durrutiano, na qual merecerão especial destaque as datas de 14 de Julho e de 20 de Novembro; datas essas que assinalam, respectivamente, os 110 anos do nascimento e os 70 da morte do revolucionário espanhol.

E agora, uma palavra do nosso patrocinador

No Comboio de Edimburgo a Londres


Que coisas se fariam - tão de seios
redonda e esbelta aqui sentada e loira
e lendo um livro idiota à minha frente!
As pernas que se juntam quanto abri-las
a duras mãos com dedos titilantes
para depois se unirem apertando
em húmidas paredes o que se entesa vendo-a ...

E ah como a boca se arredonda rósea!
E os dedos que são esguios, serão sábios?
Tão sábios como os meus e minha boca?
Que loura juventude nem me vê - quem pode
envelhecer sem raiva aos olhos dela,
se de alma e de entre pernas se é tão jovem sempre?


Jorge de Sena

quarta-feira, março 15, 2006

Grandes Aberturas # 16

The interests of a writer and the interests of his readers are never the same and if, on occasion, they happen to coincide, this is a lucky accident.

In relation to a writer, most readers believe in the Double Standard: they may be unfaithful to him as often as they like, but he must never, never been unfaithful to them.

To read is to translate, for no two persons' experiences are the same. A bad reader is like a bad translator: he interprets literally when he ought to paraphrase and paraphrase when he ought to interpret literally.

We often derive much profit from reading a book in a different way from that wich its author intended, but only (once childhood is over) if we know that we are doing so.


W. H. Auden - The Dyer's Hand

Grandes Aberturas # 15

"Até há não muito tempo sonhei com frequência que tinha de voltar para o exército. Por engano tinham-me licenciado antes do tempo, e reclamavam-me imediatamente, ou então durante o meu serviço militar fora cometido um erro administrativo que o invalidava, um erro de segunda ordem, e por isso inadvertido durante anos, mas ao mesmo tempo tão grave que tornava inevitável o meu regresso ao quartel.
Com o aterrador imediatismo dos sonhos, que sobrepõe consequências e causas em fracções de segundos, já me via formado na parada para o toque de alvorada num amanhecer chuvoso e frio de San Sebastián, mas ao olhar para o chão dava-me conta de que não tinha calçado as botas militares, mas sim os meus sapatos pretos de muitos anos depois, e que parte da minha indumentária era civil. Por um descuido inexplicável, por não estar acostumado, ia para a prisão, como o recruta que (...) se esquece de saudar regulamentarmente um superior e lhe diz bom dia, merecendo um castigo fulminante.
Recuperava no sonho outra faceta do medo militar, o medo de ser único nalguma coisa, de me encontrar sozinho entre os outros, que não teriam a menor compaixão por mim, porque no exército uma das primeiras coisas que se perdia era a piedade (...) À minha volta, imóveis nas filas, os outros soldados mostravam uma uniformidade sem mácula, uma quietude repulsiva e perfeita de colaboracionistas.

Antonio Muñoz Molina - Ardor Guerreiro (Tradução de Maria Isabel Barreno)

segunda-feira, março 13, 2006

Nicanor Parra

El Anti-Lázaro


Muerto no te levantes de la tumba
qué ganarías con resucitar
una hazaña
y después
la rutina de siempre
No te conviene viejo no te conviene
el orgullo la sangre la avaricia
la tiranía del deseo venéreo
los dolores que causa la mujer
el enigma del tiempo
las arbitrariedades del espacio
Recapacita muerto recapacita
¿que no te acuerdas cómo era la cosa?
a la menor dificultad explotabas
en improperios a diestra y siniestra
Todo te molestaba
no resistías ya
ni la presencia de tu propia sombra
Mala memoria viejo mala memoria
tu corazón era un montón de escombros
-estoy citando tus propios escritos-
y de tu alma no quedaba nada
A qué volver entonces al infierno de Dante
¿para que se repita la comedia?
qué divina comedia ni qué 8/4
voladores de luces-espejismos
cebo para cazar lauchas golosas
ése sí que sería disparate
eres feliz cadáver eres feliz
en tu sepulcro no te falta nada
ríete de los peces de colores
Aló- aló, me estás escuchando
quien no va a preferir
el amor de la tierra
a las caricias de una lóbrega prostituta
nadie que esté en sus cinco sentidos
salvo que tenga pacto con el diablo
Sigue durmiendo hombre sigue durmiendo
sin los aguijonazos de la duda
en la quietud de tu propio ataúd
en la quietud de la noche perfecta
libre de pelo y paja
como si nunca hubieras estado despierto.
No resucites por ningún motivo
no tienes por qué ponerte nervioso
como dijo el poeta
tienes toda la muerte por delante.

Só acontece aos melhores

J'ai perdu mes utopies, de Christiane Rochefort

http://www.magazine-litteraire.com/archives/ar_387.htm

Turner



















San Giorgio Maggiore at Dawn, Aguarela, 1819

sexta-feira, março 10, 2006

Post (de alta tensão)

A notícia hoje divulgada pelo “Público”, de que 100 mil portugueses tidos por fundamentais serão vacinados no caso de a pandemia das aves atingir este católico torrão lusitano, é das coisas mais extraordinárias que já me foi dado ler na imprensa. Tudo nela suscita perplexidade, a começar pelos 100 mil “fundamentais”.
Um anúncio como este é de molde a lançar os portugueses em profundos e dolorosos exames de consciência. Algo do género: Serei eu fundamental, ou não passo de uma quinta roda no carro da nação? Serei digno de figurar entre os eleitos para o embarque nesta nova Arca de Noé? Quem é mais fundamental: eu, que todas as noites varro as ruas da cidade, ou o vereador responsável pelo pelouro dos lixos urbanos? Eu, segurança num hotel de cinco estrelas, ou as estrelas a quem garanto o seguro sono que merecem? Eu, tu, ele, nós, vós, eles, ou ninguém? Que fiz eu da minha vida? Que fiz eu, ai! Oh, como me arrependo de não ter sabido fazer-me fundamental, imprescindível, de me não ter sabido adaptar aos critérios de salvação pública! Ai, ai e novamente ai!
Assim, portugueses, é chegado o momento de cada um de nós rever com sinceridade o seu percurso existencial e, em plena consciência, decidir se a sua vida é ou não fundamental para o futuro da pátria. Pela parte que me toca, e lamento ter que o confessar, afirmo desde já a minha dispensabilidade. Um país que sobreviveu sem mim oitocentos e vinte anos, conseguirá decerto aguentar-se mais alguns séculos depois de a galinha da vizinha ter acabdo comigo. Mas poderemos prescindir com igual facilidade da Agustina, do C. Ronaldo, do Rodrigo Leão? Ai, que ferozes batalhas se avizinham, pelo direito à miraculosa injecção de retrovirais! Não vai ser fácil para a futura Comissão de Sábios decidir quem é ou não fundamental, não vai. Será o Vítor Baía menos fundamental que o Marques Mendes, agora que o Helton se lesionou e a nossa vantagem pontual se evapora mais depressa do que o whisky nas garrafas cá de casa? E se a Comissão decidir que José Sócrates tem que ceder o seu lugar a Siza Vieira? E como, já agora, se terá chegado a esse número, 100 mil? Imaginemos que se conclui serem apenas 99 999 os fundamentais, quem ficará com a vacina sobrante? Ou então, situação inversa, que fazer se a Comissão concluir que afinal os fundamentais são 100 001? Que fazer ao fundamental excedente? Deixá-lo de fora? Mesmo que seja o Eusébio? E se forem 100 002? Ou 100 112? Tantas perguntas, tantas equações, tantas; e se há coisa que eu não queria estar na pele de um sábio (nem tal era possível, de resto), posto que a aritmética (ou este mix de ética e aritmética) nunca foi o meu forte.
O mais sensato, creio, seria estabelecer um sistema de quotas: tanto para os políticos (0,0001 %, por exemplo), tanto para os guarda-redes, tanto para os canalizadores (poderá Portugal ter futuro sem bons canalizadores?), tanto para o electricistas, os trapezistas, os anestesistas, e por aí fora (com exclusão de jornalistas e advogados, se fazem a fineza), até se atingir o sacro número de 100 mil, esse 1% da população portuguesa com que faremos (ou melhor, fareis) um Portugal asseado, finalmente. Boa sorte a todos.

quinta-feira, março 09, 2006

LUZ FRIA # 2

"O Poder, de facto, já não é clerical-fascista, já não é repressivo. Já não podemos empregar contra ele os argumentos a que estávamos habituados e quase afeiçoados [. . .] O Poder da nova sociedade de consumo permissiva serviu-se precisamente das nossas conquistas mentais de laicos, de iluministas, de racionalistas, para construir a sua estrutura de falso laicismo, de falso iluminismo, de falso racionalismo. Serviu-se das nossas dessacralizações para se libertar de um passado que, com as suas sacralizaçoes atrozes, já lhe não era útil.
Mas em compensação esse novo Poder desenvolveu até ao limite máximo a sua única sacralização possível: a sacralização do consumo como rito e, naturalmente, da mercadoria como fetiche. Já nada se opõe a isso. O novo Poder já não tem nenhum interesse, nem necessidade de mascarar, com Religiões, Ideais e coisas do género, aquilo que Marx tinha desmascarado."

Pier Paolo Pasolini - Escritos Póstumos (Tradução de Helena Ramos)

Grandes Aberturas # 14

"Na praia de Sídon, um touro tentava imitar um gorjeio amoroso. Era Zeus. Sentiu um arrepio, como quando os moscardos o importunavam. Mas dessa vez era um arrepio de ternura. Eros colocava-lhe na garupa a jovem Europa. Depois, o touro branco atirou-se à água, e o seu corpo imponente assomava apenas o suficiente para que a jovem não se molhasse. Muitos o viram. Tritão, com a sua concha sonora, respondeu ao mugido nupcial. Europa, trémula, conservava-se agarrada a um dos cornos do touro. Também Bóreas os viu, fendendo as águas. Malicioso e ciumento, ao ver aqueles seios pontiagudos que o seu sopro desnudara, assobiou."

Roberto Calasso - As Núpcias de Cadmo e Harmonia (Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)

Grandes Aberturas # 13

A Tissue of Lies? Could there be a more persuasively apt title for a memoir? Particularly if the rememberer of his past is referring not so much to his own lies but to those of others, and, if I may immodestly boast, I have gone mano a mano with some of the truly great liars of our time. But then I was a novelist in an era when the line between fiction and fact pretty much broke down as, in coldest blood, the "novelist" felt free to make up things for actual people to do on the page. I have also been engaged in politics , theater, and movies, three worlds where no one is ever on oath - until indicted, of course - in wich case he who takes the fall gets to write the definitive tissue of lies, often more than once, like the incomparale R. M. Nixon."

Gore Vidal - Palimpsest

Grandes Aberturas # 12

"Mais devagar, tão depressa não - um caracol anda devagar. Foi Deus quem o fez assim. Deus ou quem quer que tenha sido. De resto, pouco importa quem o criou, saiu obra asseada. Para que precisa um caracol de se apressar? Por onde quer que ande, o campo pertence-lhe. Por onde quer que vá, a sua casa fica sempre em terras que são dele. Nada o obriga a correr como um desvairado para chegar a casa a fim de impedir uma venda em hasta pública, uma penhora ou um corte de mata compulsivo. O caracol leva a casa às costas e as costas tem-nas ele como deve ser."

Stig Dagerman - As Sete Pragas do Casamento (Tradução de Miguel Serras Pereira)

Grandes Aberturas # 11

"After slapping Alexei Tolstoi in the face, M. [Mandelstam] immediately returned to Moscow. From here he rang Akhmatova every day, begging her to come. She was hesitant and he was angry. When she had packed and bought her ticket, her brilliant, irritable husband Punin asked her, as she stood in thought by a window: "Are you praying that this cup should pass from you?" It was he who had once said to her when they were walking through the Tretiakov Gallery: "Now let's go and see how they'll take you to your execution." This is the origin of her lines:

"And later as the hearse sinks in the snow at dusk...
What mad Surikov will describe my last journey?"

But she was not fated to make her last journey like this. Punin used to say, his face twitching in a nervous tic: "They're keeping you for the very end." But in the end they overlooked her and didn't arrest her. Instead, she was always seeing others off on their last journey - including Punin himself."

Nadezhda Mandelstam - Hope Against Hope (Translated from the Russian by Max Hayward)

terça-feira, março 07, 2006

Pieter de Hooch






















"A Mãe", óleo sobre tela

segunda-feira, março 06, 2006

Cézanne

CORREGGIO

domingo, março 05, 2006

Fernando Assis Pacheco

A MISSÃO DOS SETENTA E DOIS

(1)
E depois disto designou o comandante
ainda outros setenta e dois e mandou-os
em fila adiante de si
por todos os matos e morros
aonde ele devera ter ido.
E dizia-lhes: grande é na verdade
a guerra, poucos os homens.
Rogai pois ao deus da guerra
que mande homens
para a sua (dele deus) guerra.
Ide, e olhai, que eu vos mando
como lobos entre cordeiros.

Levai bornal, cantil, calçado
de lona e a ninguém saudeis
senão com fogo pelo caminho.
Na cabana aonde entrardes
dizei primeiro do que tudo:
guerra seja nesta casa;
e se ali houver algum
filho da guerra descerá
sobre ele a vossa guerra;
porque senão a guerra, a guerra, a guerra
vos enganará.

(2)

Voltaram mais tarde os setenta e dois
muito alegres
dizendo: senhor, até mesmo
os demónios se nos submetem
em virtude do teu nome.
E o comandante lhes volveu:
eu via cair do céu
a Satanás, como um relâmpago.
Dei-vos então o poder
de pisardes serpentes, e escorpiões,
e toda a força do inimigo;
e nada vos fará dano.

(3)

Digo-vos que naquele dia
haverá menos rigor para Sodoma
do que para tal povo.
E tu, Quinguengue, que te elevaste
até ao alto da mata
- serás submergida até ao inferno.
Pois eu vos afirmo que foram
muitos os profetas e reis
que desejaram ver o que vós vedes,
e não o viram;
e que desejaram ouvir o que vós ouvis
e não o ouviram.
Os PV-2 acertam sempre.

CAMILO PESSANHA

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!

- Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. -

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

sábado, março 04, 2006

Fiona Pitt-Kethley

Paying For Sex

A Hollywood actress who'd come to stay
with a born-again film extra in Richmond
enquired where to pay for sex in London.
On being told that there was no such place,
she asked, 'How do you manage then?'

The answer is ­ we manage badly.
Free sex is something like the NHS ­
months to get down to it with some coy types.
And all the details that you have to tell!
The form my mother filled for glasses
was no worse.

First, there's the questionnaire (to place your class)
on education, work and cash. (They're pleased
if you earn slightly less than them ­ enough
to dress well, pay your way, but not enough
to make them feel inferior.) Next comes
the one on sex ­ how many men you've had,
what did you do with or to whom. And all
to see if you are worthy of a fuck.

Men who'd buy endless rounds when with the boys
mentally price us up as ­ two lagers
or six gins ­ turn surly if they've got it wrong.
(A whole distillery would be too low
a price for some of them; and yet, if we
are simply generous, we're labelled 'cheap'.)
I think we're less inclined to price, although I've heard
some careful girls get night-attire from Marks
then take it back if the seduction fails,
ensuring they don't waste more than they paid
for Durex planted in their flatmate's drawers
to be discovered in all innocence.

And there are men who dub you 'beautiful',
who also need 'I love you's' said before.
Romantic shits ­ they're first to knock you off
the pedestal they put you on. Goddess
becomes Aunt Sally, crown ­ a dunce's cap,
when all is done.

That actress wished to pay a straighter price ­
to keep control and honestly enjoy
it like an evening at the theatre,
where players, who are good and love their job,
stand up to do their bit. I see her point.
Yet, all that is conventional in me
shrank back appalled when a man,
(pretty and young as I was), hinted that
he'd like a fiver as 'a souvenir'.

Grandes Aberturas # 10

"Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma aprte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente."

Séneca - "Cartas a Lucílio" (Tradução de J. A. Segurado e Campos)

sexta-feira, março 03, 2006

Grandes Aberturas # 9

"Es duro el silencio. Mucho más que el ruido. Enloquecedor el ruido; sobrecogedor el silencio. Con los hombres nos enfrenta el primero; con ele tiempo y la muerte, el segundo.
Yo estoy ahora en el monte, solo. Y no escucho nada, absolutamente, excepto a veces, uno de esos pájaros que por aqui llaman negras. Este pájaro, al oscurecer, cuando ya es casi de noche, grazna súbito en la maleza seca, de un matorral a otro. Y hace unos minutos ha chirriado uno. En mis oídos zumba el silencio total, que deprime y angustia, colocándonos al borde del abismo, el nuestro, nuestro pozo sin fondo."

César Simón - "Perros Ahorcados"

Grandes Aberturas # 8

"Je suis dans le chambre de ma mère. C'est moi qui y vis maintenant. Je ne sais pas comment j'y suis arrivé. Dans une ambulance peut-être, un véhicule quelconque certainement. On m'a aidé. Seul je ne serais pas arrivé. Cet homme qui vient chaque semaine, c'est grâce à lui peut-être que je suis ici. Il dit que non. Il me donne um peu d' argent et enléve les feuilles. Tant des feuilles, tant d'argent. Oui, je travaille maintenant, un peu comme autrefois, seulement je ne sais plus travailler. Cela n'a pas de importance, paraît-il. Moi je voudrais maintenant parler des choses qui me restent, faire mes adieux, finir de mourir."

Samuel Beckett - "Molloy"

Grandes Aberturas # 7

"Quando acontece vir ao mundo numa tarde de domingo, tendo a tempestade desabado sobre os lugares, fazendo as árvores dobrar-se até ao chão, o melhor que temos a fazer é gritar de terror. Foi o que aconteceu com Luís Matias do Barral, homenzinho com cinquenta e dois centímetros de comprimento e com pulmões verdadeiramente prometedores, posto que descendia duma família de oradores. O pai brindou com um velho Porto cor de ferrugem, e teve a secreta vontade de que a parteira o fizesse beber um pouco da água do banho para o tornar inteligente."

Agustina Bessa-Luís - "Ordens Menores"

Grandes Aberturas # 6

"Now, what I want is, Facts. Teach these boys and girls nothing but Facts. Facts alone are wanted in life. Plant nothing else, and root out everything else. You can only form the minds of reasoning animals upon Facts: nothing else will ever be of any service to them. This is the principle on wich I bring up my own children, and this is the principle on wich I bring up these children. Stick to Facts, Sir!"

Charles Dickens - "Hard Times"

Grandes Aberturas # 5

"O tempo é um guia cego.
Rapaz do pântano, vim à superfície nas ruas lamacentas da cidade afogada. Durante mais de mil anos, apenas os peixes vaguearam pelos passeios de madeira de Biskupin. Construídas de frente para o sol, as casas estavam inundadas pelas trevas lodosas do rio Gasawka. Cresciam jardins luxuriantes no silêncio subaquático, lírios, juncos, ervas malcheirosas.
Ninguém nasce só uma vez. Se temos sorte, emergimos de novo nos braços de alguém; com azar, acordamos quando a longa cauda do terror nos varre o interior do crâneo."

Anne Michaels - "Peças em Fuga" (Tradução de Manuela Vaz)

Grandes Aberturas # 4

"Eh bien voilá. C' est fait. J' ai ce que j'ai voulu. Le terrain est déblayé. Nu. Complétement nu. Et m'appartient. Une victoire si totale, et si chèrement acquise, me laisse incertaine soudain. M'effraie: les ponts sont coupés derrière moi, il faut avancer. J'ai fait le vide sous mes pas, où marcherai-je? Au seuil du bonheur, si mérité soit-il, si cher qu'on l'ait payé, le coeur hésite; j'ai peur de mes regrets, et de mes complaisances. Vais-je me changer en statue de sel? Ce n'est pas bon de se retourner sur des ruines: on ne sais pas où on va."

Christiane Rochefort - "Le Repos du Guerrier"

LUZ FRIA #1

"On trouve toujours quelque chose, hein, Didi, pour se donner l'impression d'exister."

Samuel Beckett

Grandes Aberturas # 3

"O meu nome é Manuel Venator; presto serviço, à noite, como steward na casbah de Eumeswil. A minha fisionomia não sobressai do corriquiero; em jogos de campo posso aspirar a um terceiro lugar; e com mulheres nunca me atrapalho. Vou a caminho dos trinta; dizem que sou de índole prazenteira - o que já a minha profissão deixa antever. No que toca à política, sou tido por pessoa fixe, embora não particularmente militante.
É quanto basta para me definir a traços largos. Estes elementos informativos são sinceros, embora, para já, indefinidos. Irei especificando aos poucos e poucos; nesse aspecto, contêm em si o esboço de uma exposição geral."

Ernst Jünger - "Eumeswil" - (tradução de Sara Seruya)

Grandes Aberturas # 2

"I came to grief late in life - when I was forty, in Minnesota. The distress I almost failed to bear during the long nigths of that hot summer was my legacy, I suppose. There are times, even now, I consider it my rightful inheritance."

"Gabriel's Lament" - Paul Bailey

Grandes Aberturas #1

"En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados, lentejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda. El resto della concluían sayo de velarte, calzas de velludo para las fiestas con sus pantuflos de lo mismo, los días de entre semana se honraba con su vellori de lo más fino. Tenía en su casa una ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba la podadera. Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años, era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro; gran madrugador y amigo de la caza. Quieren decir que tenía el sobrenombre de Quijada o Quesada (que en esto hay alguna diferencia en los autores que deste caso escriben), aunque por conjeturas verosímiles se deja entender que se llama Quijana; pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la narración dél no se salga un punto de la verdad."

"D. Quijote de La Mancha" - Cervantes

Sarmatian Review

quinta-feira, março 02, 2006

Raoul Hausmann
























"O Crítico de Arte", colagem e fotomontagem, 1919-20

Gustave Caillebotte
























"Les orangers", óleo sobre tela, 1878

Gerhard Richter




















"Betty", óleo s/ tela, 1988